A Génese de um Ultra-Ciclista

Vá... calma!
Antes de começarem a pensar "olha este convencido!" Leiam a introdução até ao final para perceberem porque é que me considero um Ultra-Ciclista! :)

Acreditem ou não, comecei a pensar neste tópico em 2021 quando estava de férias a ler o livro "Imortal" do José Rodrigues dos Santos.
Aqui fica um excerto:

“Vasco da Gama adorava essa nau. O problema é que um dia descobriu-se que uma das tábuas na quilha estava estragada. Então mandou substituí-ía. Tiraram a tábua estragada e puseram uma nova. A pergunta que lhe faço é esta: depois de colocada a tábua nova poderemos ainda dizer que se tratava da mesma nau de Vasco da Gama?

-Sim, claro. E então?

-Imagine agora que, em vez de uma, eram afinal duas tábuas a ser substituídas. Poderemos dizer, depois de a substituição das duas tábuas ter ocorrido, que se tratava ainda da mesma nau de Vasco da Gama?
"
E se eu pegar neste exemplo e fizer uma analogia com ciclismo e distâncias?
Todos concordamos provavelmente que 500km são uma distância que se pode considerar Ultra-Ciclismo certo? Mas e então 499? 498? ... 300? 299...
Vamos agora inverter este pensamento. O máximo que já fiz em 24horas foram 673km, mas há quem faça mais! Será que isso me torna menos Ultra?
Estão a ver onde quero chegar? Onde é que se traça afinal a linha que separa o normal, do Ultra?

Por esta razão eu tenho uma versão muito própria (e poética) sobre Ultra-Ciclismo... sempre que nos ULTRApassamos... somos ultra :)

Portanto sim, sou um Ultra-Ciclista,e se vocês também tentam ultrapassar os vossos limites...sejam bem vindos ao mundo dos ultras ;)

Agora que garanti que vocês não me vão considerar um convencido, posso passar ao verdadeiro propósito deste texto:
Como me tornei um Ultra-Ciclista.. e também os erros que cometi nos últimos 13 anos até chegar ao ponto onde estou (que não é grande coisa... mas é o que é!) Este artigo vai ser também muito interessante para mim, porque com o passar dos anos acabamos por nos esquecer do "início da viagem" :)

Vou talvez saltar os anos em que andei a largar lastro nas minha voltas pela Apostiça e Fonte da Telha onde fui lentamente ultrapassando as marcas dos 40km, 50km,70km...
Talvez nestes anos o momento mais engraçado e ao mesmo tempo mais duro foi quando me fui inscrever para um ginásio onde a joia era 100euros.. mas estavam com uma campanha de desconto = peso... paguei 2 euros! :D

Capítulo I - Más influências
O primeiro contacto com grandes distâncias foi-me proporcionado por um grande amigo, o Bruno Miguel. 
O Bruno foi talvez quem mais puxou por mim nos meus primeiros anos de ciclismo. Por mais que eu me esforçasse, o Bruno tinha sempre mais um bocadinho para dar, era a minha cenoura!
E juntos decidimos fazer um teste de 200km -> Moita - Tróia - Moita com as nossas bicicletas de BTT roda 26! Foi um teste com sucesso, e muito me esforcei para me manter na roda do Bruno. Ainda não tinha Strava nesta altura... usava o Endomondo! Mas passei por lá e a minha conta já não tem actividades.


Estavamos preparados! Acreditavamos nós. Este teste serviu de preparação para uma aventura no dia da famosa clássica "Tróia - Sagres" em 2011.
O nosso objectivo seria fazer 300km, passando em Sagres e seguindo para Lagos.

Lembro-me de estar sentado no chão á chuva, quase a chegar a Vila Nova de Milfontes cheio de câimbras nas pernas... com apenas 80kms feitos.

Foi aqui que aconteceu um dos meus primeiros erros neste mundo dos ultras. O Bruno tinha capacidade para andar no pelotão de bicicletas de estrada. Lembro-me de fazer a estrada até Sines a velocidades superiores a 40km/h... eu ia a dar tudo para seguir a minha cenoura e não queria dar parte fraca.
Puff... o meu corpo cedeu aos 80km.
Naquele momento chegar a Lagos era quase como chegar á lua para mim... faltavam 220km.
Lembro-me de ver a cara do Bruno, surpreso por me ver no chão. Talvez um pouco desapontado porque sabia que não me iria deixar sozinho... e que chegar a Lagos talvez estivesse fora de questão.
O Bruno ficou comigo, e foi o meu escudo até Sagres, e depois até Lagos, e depois até outra rotunda dentro de Lagos na qual tivemos de fazer umas voltas para o nosso conta kms bater no número 300!
Este dia teve um grande impacto na forma como vivo aventuras em grupo. Posso ter vários defeitos, mas nunca me vão ver a deixar um amigo para trás... a menos que seja para tirar umas fotos! :)

Capítulo II - O Eterno Segundo
Existe provavelmente 1 momento que definiu os últimos 12 anos da minha vida, em 2 rodas claro!
Aconteceu em 2012 quando fui dar uma volta de bicicleta com a minha grande amiga Sandra Araújo em que ela me disse que ia participar numa prova de 24horas de BTT em Coruche dentro de 2 semanas.

Nunca tinha ouvido falar em tal coisa... seria o corpo humano capaz de aguentar pancada durante 24horas sem parar?
Claro que fiquei logo interessado, e a primeira coisa que fiz quando cheguei a casa foi ver se ainda existiam inscrições disponíveis... afirmativo!!!!

Esse momento inicial de excitação seguiu-se de dúvida e de algumas conversas, e também de alguns dos habituais demónios que aparecem no nosso ombro:
"Mas se nunca ganhaste uma maratona de 80 ou 100km, porque é que achas que és capaz de ganhar algo assim?"
Click, click, next, Enter
A sua inscrição encontra-se confirmada.

Fui para Coruche sem saber a mínima ideia do que esperar. Por todo o lado existiam tendas com participantes e os seus amigos/ajudantes... e eu com uma toalha e uma geleira no chão.
Infelizmente (ou felizmente) o meu joelho cedeu nas 10horas de prova. 
Fiquei desapontado, triste e o demónio lá ganhou desta vez:
"Eu avisei-te Pinto..."
Nem tudo foi negativo... fiquei em Coruche durante as 24horas e ainda deu para ser aguadeiro e ajudar a minha amiga Sandra a vencer a prova de 24horas Feminina.
Saí de lá com uma certeza: "Sozinho nunca irei conseguir".

Em 2014 voltei a Coruche... depois de mais de 1 ano a "treinar" com este objectivo em mente. 
Levei comigo o melhor staff que consegui contratar.. a minha irmã e a minha mãe! :)
394km e 24horas depois estávamos no 2º degrau do pódio... elas sorridentes e eu com uma espécie de sorriso amarelo.
Saí de lá com uma quase certeza: "Afinal isto talvez seja possível"

2015 foi o ano em que aprendi a minha melhor lição nas 24h de Coruche:
"Nunca mas nunca descartes um adversário pelo seu aspecto ou pelo seu equipamento"

Passei por um adversário algures no meio da prova. Quando ia a passar vi algo estranho nos seus pés... ou a ausência de algo... não tinha sapatos/pedais de encaixe.. tinha uns ténis normais de desporto e pedais de plataforma!
Lá estava eu em 2º lugar novamente...
O demónio fez-me uma visita:
"Tens de dar tudo para chegar ao 1ºlugar Pinto!!  O 2º está garantido... o gajo nem pedais de encaixe tem!!!"
Acabei em 3º Lugar... e em 2º o meu amigo Mário Manuel e os seus ténis.

2016 foi o ano de mais um upgrade de luxo no meu Staff! O meu amigo João Miranda, o meu padrinho João Garcia, a minha Mariana e uma carrada de outros amigos que me fizeram umas visitas!
Tinham passado 12 horas de prova e recebo uma chamada:
"Estás em primeiro João"
"Não pode ser... eu não me lembro de ultrapassar quem ia na frente! Têm a certeza?"
"Sim! Já fomos várias vezes falar com a organização! Tens 10 minutos de vantagem... vamos gerir durante a noite!"

Entrada da última volta, a vantagem continuava +- nos 10 minutos graças a um controlo digno de F1 por parte do meu Staff.
Então parece que é esta a sensação de vitória... leveza, despreocupação, ausência de dor ou qualquer cansaço depois de 24horas e mais de 400km... e principalmente a sensação de objectivo cumprido depois de tanto tempo a pensar nele.


Na entrada para a Praça de Coruche tinha um membro da organização á minha espera...
- João, peço desculpa e não sei como te dizer isto... mas os chips falharam. Não estás 10 minutos na frente dos teus adversários e sim com 15 minutos de atraso para o 1º.
-... Ok... compreendo.
Entrei na Praça...vi toda a minha família de lágrimas nos olhos, e pensei: "Tens de ser forte, não podes mostrar tristeza ou revolta... eles sofreram tanto quanto tu nestas 24horas"
- João.. desculpa, nós perguntámos várias vezes.. estava tudo correcto no site das classificações.
- Não faz mal... a culpa não é vossa, não podiam adivinhar.
E o meu corpo decidiu desligar nesse momento. Sem forças para ficar em pé, tonturas, os intestinos ás voltas... um full crash.
Fui levado em ombros para o único "trono" que iria ser meu nesse dia...


2017, Mais um upgrade de staff relevante! O meu amigo José Martins que vinha com uma mão partida!
Aproximadamente a meio da prova eu e o meu amigo Mário Manuel estávamos juntos...já tinha pedais de encaixe!

"O inimigo do meu inimigo é meu amigo"... encaixava perfeitamente este ditado.

Falámos e decidimos trabalhar em conjunto para ir alcançar o 1º classificado, e conseguimos! Os dois amigos, novamente inimigos na luta pela vitória.
Numa das passagens pela meta senti o Mário a ficar para trás... olhei para trás e a corrente tinha saltado. Reduzi a velocidade...
"Segue João... tenho de resolver isto... já não é a primeira vez"
E eu assim o fiz.
Não me lembro de intensificar o ritmo nas seguintes horas... não sou fã de ganhar graças aos problemas dos meus adversários e a minha estratégia nas 24horas passa quase sempre por ser o mais constante possível...

A prova estava prestes a terminar, o tempo disponível estava no limite para conseguir fazer mais 1 volta... avisou a minha família:
- Aumenta o ritmo... estás no limite para conseguires fazer mais 1 volta!
- Ok
E assim o fiz... passei na meta para entrar na ultima volta com uma margem de 2 ou 3 minutos.. estava autorizado a passar para fazer mais uma.

Poucos minutos depois recebo uma chamada:
- João... ganhaste!
- O quê?
- Sim... o Mário não chegou a tempo para passar para mais 1 volta!

Honestamente não me lembro da minha resposta, só me lembro de ter sido a volta mais pacífica que alguma vez dei em Coruche. Em 5 anos foi a única vez que parei para uma fotografia!

Entrei na Praça a medo.. mas desta vez não existiam lágrimas e sim sorrisos na cara da minha família.


Hora do pódio... e também de explicar o nome deste capítulo - O Eterno Segundo.
Por mais que tentasse ignorar o meu demónio era impossível...
- Oh Pinto... e se não tivesse saltado a corrente ao Mário?

FINAL DO 2º CAPÍTULO!



 

 

 

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